"A verdade é que fui um mau aluno e que a minha mãe nunca se refez completamente desse desgosto. Hoje que a sua consciência de senhora muito idosa abandona os limites do presente e reflui lentamente para os longínquos arquipélagos da memória, os primeiros recifes que emergem recordam-lhe a inquietação que a devorou durante toda a minha escolaridade.
Pousa em mim um olhar inquieto e, lentamente:
– Que fazes na vida?
O meu futuro afigurou-se-lhe tão comprometido desde sempre que nunca acreditou muito no meu presente. Não estando destinado a ter futuro, eu não lhe parecia preparado para durar.
Eu era o filho instável. (...)
Eu era, portanto, um mau aluno. Na minha infância, chegava todos os dias a casa perseguido pela escola. As minhas cadernetas reflectiam a censura dos professores. Quando não era o pior da turma, era o penúltimo. (Bravo!) Impenetrável à aritmética primeiro, à matemática em seguida, profundamente disortográfico, refractário à memorização das datas e à localização dos pontos geográficos, inapto para a aprendizagem de línguas estrangeiras, considerado preguiçoso (lições não estudadas, deveres por fazer), levava para casa notas lamentáveis que nem a música, uma qualquer actividade desportiva ou extracurricular, de resto, conseguia remediar.
– Compreendes? És ao menos capaz de compreender o que te explico?
Eu não compreendia. Esta incapacidade de compreender remontava tão longe na minha infância que os meus familiares criaram uma lenda para datar a sua origem: a aprendizagem do alfabeto. Sempre ouvi dizer que precisei de um ano inteiro para aprender a letra a. A letra a, num ano. O deserto da minha ignorância começava antes do intransponível b.
– Não entremos em pânico, daqui a vinte e seis anos ele dominará perfeitamente o alfabeto.
Assim ironizava o meu pai para afugentar os seus próprios receios. (...)
Eu era um objecto de estupefacção, e de estupefacção constante, pois os anos iam passando sem contribuir com a mínima melhoria para o meu estado de torpor escolar. «Fico de boca aberta», «Nem posso acreditar» são expressões familiares, associadas a olhares de adultos nos quais vejo que a minha incapacidade de assimilar o que quer que seja escava um abismo de incredulidade. Aparentemente, toda a gente compreendia mais depressa do que eu.
– És totalmente tapado! (...)
...Mas evitemos subestimar a única coisa sobre a qual podemos agir pessoalmente e que, essa, data da noite dos tempos pedagógicos: a solidão e a vergonha do aluno que não compreende, perdido num mundo em que todos os outros compreendem. Só nós podemos tirá-lo dessa prisão, tenhamos ou não formação para o fazer.
Os professores que me salvaram – e que fizeram de mim um professor – não tinham recebido nenhuma formação para esse fim. Não se preocuparam com as origens da minha incapacidade escolar. Não perderam tempo a procurar as causas nem tampouco a ralhar comigo. Eram adultos confrontados com adolescentes em perigo. Pensaram que era urgente. Mergulharam de cabeça. Não me apanharam. Mergulharam de novo, dia após dia, mais e mais…
Acabaram por me pescar. E muitos outros como eu. Repescaram-nos, literalmente. Devemos-lhes a vida."
Daniel Pennac in "Mágoas de Escola"
Sem comentários:
Enviar um comentário